SangueQuente

Thursday, September 30, 2004

Sangue Frio

Dizem por aí que tudo depende do ponto de vista. Ora, tudo, tudo mas mesmo tudo, é mesmo muita coisa! Será que às vezes não existe só uma forma de olhar, e as restantes não passam de desculpas para a nossa miopia? É que ultimamente somos tão livres, tão relaxados, temos tantas possibilidades... que pessoas como eu, iguais às outras, não vêm saída para a sua vulgaridade. Para que andam para aí a discutir a clonagem se afinal somos todos iguais?!
Cedo ou tarde acabamos por perceber que os nossos sentimentos, as nossas ideias, têm um lugar e um prazo. Noutra altura, são diferentes. E passam, mudam, aumentam, morrem, explodem, sufocam. O que hoje criticamos ao nosso inimigo favorito, é o que faremos nós mesmos noutro dia. Ou até mesmo hoje. Se conseguirmos manter uma certa distância das coisas (e se há quem o consiga, todos somos teoricamente capazes), deixa de ser difícil preocuparmo-nos com um momento ou uma pessoa. Porquê? Porque à distância a relatividade é óbvia, quer isto dizer, o que hoje e aqui é tão crucial, não terá amanhã a menor das importâncias. Olhamos para o nosso passado e vemos exemplos inúmeros desta verdade tão fria. E se conseguirmos manter consciente este facto, sofrer com o presente perde o sentido no futuro. Então para quê deixar para amanhã o que podemos fazer hoje? Na verdade, é como se a dormência, o não-quero-saber, o egoísmo e a preguiça se enlacem num nó universal que magoa todos à nossa volta e nos aperta até não sobrar uma gota de sangue.
Brincamos com os sentimentos uns dos outros sem remorsos. Destruímos amizades que nos levaram anos a construír. Usamos a distância para dizer as coisas que não temos coragem de atirar à cara uns dos outros. Andamos todos por aí a saltitar entre a pena de nós próprios e o orgulho das nossas trafulhices. Nós não somos maus, os outros é que se deixam levar! Fossem mais espertos! E assim seguimos a trilha do inevitável, nestas veias cheias de varizes, que levam o nosso sangue venenoso até à amargura com que os outros deixam as nossas vidas. Circula dentro de nós esta atitude que tem que voltar ao ponto de partida para podermos respirar. Os pulmões dos sentimentos limpam a nossa estupidez para podermos voltar a confiar em alguém, podermos dizer o que sentimos sem medos, e acima de tudo sentirmos que estamos vivos. O dia de hoje é tão importante quanto o de amanhã, portanto se hoje o mundo cabe numa pessoa porquê não arriscarmos a felicidade? Afinal de contas, há que escolher o ponto de vista certo, que é o único, que é o da verdade. Se não conseguirmos o céu neste instante, amanhã ou depois já não estaremos decepcionados. E se conseguirmos... ah, se formos até aí... Então esta é a única forma de ver as coisas: somos felizes, e o nosso sangue frio escalda-nos as veias!